Inspirada pela recente regulação de serviços digitais aprovada no Reino Unido (DMCC), assim como por iniciativas trazidas do Japão e da Alemanha, o Ministério da Fazenda apresentou uma nova proposta de modelo para a regulação dos serviços digitais no Brasil.
A proposta foi divulgada em coletiva realizada no dia 10 de outubro e tem como um dos principais fundamentos a suposta demora na análise de casos envolvendo serviços digitais pelos órgãos antitruste, especialmente o CADE. Essa morosidade geraria ineficiências, tais como os tipping effects (ou "tombamento de mercado"), favorecendo a consolidação de monopólios digitais.
Além disso, o Ministério defende que os ecossistemas digitais possuem uma dinâmica única, com características como efeitos de rede, mercados de múltiplos lados e a coleta e processamento de dados, que suscitam preocupações diferentes das que se aplicam a setores tradicionais. Acredita-se que essa dinâmica demanda uma abordagem regulatória diferenciada, uma vez que ela impactaria a capacidade do CADE de endereçar questões concorrenciais de forma ágil e eficaz.
No entanto, a questão que surge é se realmente há necessidade de uma nova regulação para os serviços digitais no Brasil, ou se o caminho mais adequado seria aprimorar as ferramentas já existentes. O setor de serviços digitais é um dos mais dinâmicos da economia brasileira, contribuindo de forma significativa para o crescimento e a inovação.
Em 2022, o comércio eletrônico movimentou R$ 260 bilhões, um crescimento de 27% em relação ao ano anterior. Além disso, plataformas digitais e fintechs têm se consolidado como pilares centrais de inclusão financeira e acesso a serviços essenciais, com impacto direto na produtividade e competitividade do país. Implementar uma regulação excessiva pode frear essa evolução, ao impor custos e barreiras desnecessárias.
Ferramentas para Regular Ecossistemas Digitais
A proposta sugere que o CADE deve ter instrumentos para monitorar e aplicar medidas contra empresas conhecidas como "winners take all", que controlam ecossistemas digitais amplos e conseguem capturar uma parcela significativa das receitas de produtos e serviços atuais e futuros. O Ministério sugere alterações na Lei nº 12.529/11 (Lei de Defesa da Concorrência) para dar ao CADE autoridade para definir uma lista de empresas digitais sujeitas à regulação, com base em critérios qualitativos como efeitos de rede e presença em mercados de dois lados, além de um critério de faturamento a ser estabelecido.
Adicionalmente, seria criada uma unidade especializada no CADE, focada em serviços digitais, com a possibilidade de atuar em conjunto com outras agências reguladoras, como a ANATEL, o BACEN e a ANPD. Nos casos de investigações, o ônus da prova seria invertido, cabendo às empresas listadas a responsabilidade de demonstrar que suas práticas não são prejudiciais à concorrência.
A inversão do ônus da prova e a exigência de envio de relatórios periódicos para monitoramento ampliado podem representar uma carga regulatória desnecessária, visto que essas medidas não atacam diretamente o problema da demora nas decisões do CADE, mas sim aumentam a burocracia e impõem custos adicionais às empresas, o que pode desestimular a inovação.
Críticas à Proposta
A experiência europeia, com o DMA e o caso Google Shopping, serve de inspiração para a proposta, mas é preciso considerar as particularidades do mercado brasileiro. No Brasil, o CADE decidiu não condenar o Google no caso Google Shopping, com base na ausência de provas de manipulação de algoritmos que favorecessem o Google Shopping em detrimento dos comparadores de preços concorrentes.
O relator do caso, Mauricio Bandeira Maia, concluiu que as práticas adotadas pelo Google, como o modelo de anúncios PLA (Product Listing Ads), trouxeram eficiências tanto para os consumidores quanto para os anunciantes, o que ajudou a justificar o arquivamento do caso. Foi considerado, também, que o aumento do custo por clique (CPC) estava mais relacionado a mudanças estruturais no mercado digital como um todo. Além disso, Maia destacou que uma condenação ao Google poderia prejudicar a inovação, pois as práticas em questão permitiram avanços que beneficiaram o mercado como um todo.
Essa análise levanta a dúvida sobre a real necessidade de uma nova regulação. O CADE já tem mecanismos para investigar e punir práticas anticompetitivas no setor digital, e o problema parece estar na eficiência dos processos, e não na falta de regulação.
O problema do critério de faturamento
Outro ponto crítico da proposta é o critério de faturamento para definir quais empresas serão alvo de uma regulação mais severa. Focar apenas nas big techs globais pode criar um safe harbour para empresas locais que, embora não alcancem o faturamento das gigantes internacionais, possuem poder de mercado significativo em determinados nichos. Essa exclusão criaria um ambiente onde empresas locais com alto market share escapam de uma regulação necessária, enfraquecendo a concorrência em mercados específicos.
No Brasil, é comum encontrar empresas que dominam setores específicos em determinadas regiões ou mercados de nicho, e que, mesmo sem faturamento elevado em termos globais, detêm um market share expressivo em suas áreas de atuação. Ao focar apenas em gigantes globais, a regulação proposta corre o risco de não capturar esses players locais com poder de mercado relevante, o que pode enfraquecer a competitividade em mercados importantes.
O CADE já possui as ferramentas necessárias?
O CADE já dispõe de ferramentas robustas para lidar com abusos nos mercados digitais. O foco deveria estar em melhorar a eficiência e a celeridade dos processos, utilizando as estruturas existentes para conduzir investigações de mercado e aplicar sanções quando necessário. A proposta de regulação, ao invés de resolver a ineficiência na tomada de decisões, adiciona complexidade e custos, criando um ambiente de maior incerteza para as empresas.
Conclusão
Embora o Ministério da Fazenda apresente a proposta como uma solução para os desafios impostos pelos serviços digitais, a real necessidade de uma nova regulação não está clara. O foco deveria estar em aprimorar as ferramentas já existentes no CADE e aumentar a celeridade das decisões, em vez de criar novas obrigações que possam sobrecarregar as empresas e inibir a inovação. A criação de novas obrigações, como a inversão do ônus da prova, o envio obrigatório de relatórios e o foco em grandes empresas globais, pode não ser a solução mais eficiente para promover um ambiente competitivo e inovador. Ao final, o problema não está na falta de regulação, mas na necessidade de agilidade na aplicação das regras já existentes.