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Por meio de seu Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) editou a Nota Técnica nº 2/2025 e assim instituiu, em 6 de março de 2025, novos e mais rigorosos parâmetros para a garantia dos direitos das consumidoras, entre os quais se destacam a vedação da comunicação sexista, a participação ativa das mulheres em órgãos e instâncias de proteção aos direitos consumeristas e a garantia de segurança e qualidade dos produtos.
Salientando a urgência de um posicionamento efetivo do Estado em defesa das mulheres, como previsto no artigo 3º, inciso IV, da Constituição da República, a nota ainda ressalta que diversas práticas abusivas tomam por referência o público feminino, tratado como objeto de consumo em uma sociedade “que oprime, renega, segmenta, discrimina e abusa”.
A fundamentação da normativa também destaca os incisos I e XLI do artigo 5º, os quais preveem, respectivamente, que todos, mulheres e homens, são iguais nos termos da lei, que punirá toda discriminação atentatória aos direitos fundamentais; e o inciso XXXII do mesmo artigo, que classifica o direito do consumidor como direito fundamental.
A nota técnica reafirma a vulnerabilidade como referência central para aplicação e interpretação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), reconhecendo-a como um princípio estruturante para a caracterização da parte consumidora e a consequente garantia de sua proteção.
No caso das mulheres, essa vulnerabilidade assume contornos específicos, agravada por fatores sociais e estruturais que antecedem a própria relação de consumo. A normativa destaca que essa condição de fragilidade é inerente à experiência humana, podendo ser temporária ou permanente, e que não depende de comparação com outros grupos, por se tratar de um estado próprio do sujeito, e não de um resultado relacional.
Ao ampliar esse conceito, a Senacon reforça a necessidade de um olhar mais atento às desigualdades de gênero no consumo, de modo a assegurar políticas públicas e práticas de mercado sensíveis às especificidades femininas.
Nesse sentido, no que tange propriamente aos desafios impostos às mulheres no mercado consumidor, o que se verifica, ainda de acordo com a Senacon, é uma pré-existência de marcadores sociais incidentes sobre uma relação jurídica caracterizada por uma vulnerabilidade posterior, que justifica e fundamenta o microssistema consumerista.
A nota técnica ilustra como a ausência de perspectiva de gênero impacta negativamente a experiência da mulher consumidora. Durante décadas, testes de colisão veicular utilizaram apenas protótipos masculinos, e o primeiro manequim feminino só foi desenvolvido em 2023. Da mesma forma, as especificidades do metabolismo feminino também foram ignoradas em ensaios clínicos para testes de medicamentos, hegemonicamente conduzidos por e com homens, o que resultou em maior exposição das mulheres a efeitos adversos de medicamentos.
A nota também chama atenção para a baixa representatividade feminina na literatura médica, refletida na escassez de estudos sobre ciclos e fluxos menstruais. Esse déficit impacta diretamente o mercado de produtos de higiene, que ainda baseia muitos de seus testes em soluções salinas pouco semelhantes ao sangue humano - o que compromete tanto os resultados obtidos quanto a qualidade dos produtos e a precisão das informações constantes nas embalagens.
Em linha com o propósito exposto em sua introdução, de atuação ativa do Estado na promoção de direitos fundamentais, a Nota Técnica nº 2/2025 enfatiza que a vulnerabilidade da mulher consumidora deve ser levada em conta na formulação de políticas públicas e nas regulações de mercado, e prevê a atuação conjunta dos órgãos de defesa das consumidoras, a fiscalização mais efetiva e a necessidade de formação da sociedade, além de instituir as seguintes diretrizes:
- Igualdade de gênero e não-discriminação: Promoção da igualdade e eliminação de todas as formas de violência e discriminação contra a mulher no consumo
- Proteção de direitos: Garantia contra práticas comerciais desleais e tratamento discriminatório no acesso a bens e serviços
- Educação e conscientização: Promoção de campanhas para informar a sociedade sobre os direitos das consumidoras e combater estereótipos de gênero
- Comunicação não sexista: Proibição da objetificação e sexualização da mulher em campanhas publicitárias e do uso de estereótipos de gênero
- Preços justos e igualdade de acesso: Vedação à prática de preços diferenciados com base no gênero, salvo justificativa objetiva e clara
- Segurança e qualidade: Garantia de produtos e serviços seguros e de qualidade, com informações adequadas, especialmente para gestantes
- Participação nas decisões: Inclusão de mulheres em órgãos de proteção ao consumidor, assegurando representatividade e voz ativa
- Cooperação institucional: Atuação conjunta entre órgãos de defesa do consumidor, organizações de mulheres, fornecedores e entidades de direitos humanos
- Regulamentação e fiscalização: Criação e aplicação de legislação específica para assegurar igualdade de tratamento no consumo
- Ações afirmativas: Fomento à inclusão das mulheres nas relações de consumo por meio de políticas e práticas afirmativas
- Políticas empresariais inclusivas: Consideração das especificidades do público feminino nos testes e desenvolvimento de produtos e serviços
- Inclusão social e financeira: Promoção de políticas voltadas à inclusão econômica das mulheres, com atenção ao mínimo existencial e à prevenção do superendividamento
- Protocolos de proteção em espaços de entretenimento: Parcerias para ampliar ações de prevenção e tratamento da violência contra mulheres em ambientes de lazer e eventos
A publicação da Nota Técnica nº 2/2025 insere-se em um contexto de crescente atenção às práticas de mercado que impactam diretamente as consumidoras, promovendo diretrizes voltadas à construção de relações de consumo mais equitativas, seguras e transparentes. Em sua terceira edição — publicada inicialmente em 2023 e atualizada nos anos de 2024 e 2025 —, o documento reforça a necessidade de que os fornecedores adequem suas condutas às normas já vigentes, ao mesmo tempo em que incentiva a formulação de políticas empresariais inclusivas e a ampliação de estudos sobre os impactos de produtos e serviços no público feminino.
O cumprimento e a ampla divulgação das diretrizes envolvem todos os órgãos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, numa atuação coordenada e multissetorial. A relevância da iniciativa foi reconhecida internacionalmente, tendo a nota sido inclusive apresentada na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
Leia a Nota Técnica da íntegra: SEI - 08012.001002/2023-93.