Marco Civil da Internet: direitos, responsabilidades e o futuro digital do Brasil
Entenda o impacto da lei que define as regras da internet no país, o debate sobre a responsabilidade das plataformas e as decisões do STF que moldarão a liberdade online.

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O que é o Marco Civil da Internet?
A Lei Federal 12.965, de 3 de abril de 2014, mais conhecida como “Marco Civil da Internet” (MCI) é a principal norma brasileira que regula o uso da internet no país. Apelidado de “Constituição da Internet”, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para usuários, provedores e o Estado, com foco na proteção da liberdade de expressão, da privacidade e da neutralidade da rede.
O MCI foi um marco não apenas pelo seu conteúdo, mas também pelo seu processo de criação inovador e altamente participativo. Diferentemente do processo legislativo tradicional, que segue um trâmite mais restrito, o Marco Civil nasceu de um amplo debate público, envolvendo especialistas, empresas de tecnologia, acadêmicos, organizações da sociedade civil e cidadãos.
Entre 2009 e 2011, o texto do projeto foi construído colaborativamente por meio de consultas públicas na internet – houve o desenvolvimento de uma plataforma online, permitindo que qualquer pessoa opinasse sobre os temas discutidos.
Antes do MCI, inexistia uma legislação abrangente que disciplinasse a internet no Brasil. As regras sobre direitos e deveres dos usuários e provedores eram interpretadas caso a caso pelo Judiciário, o que gerava insegurança jurídica e decisões conflitantes.
A nova lei trouxe regras claras e equilibradas, contribuindo para o crescimento da internet no Brasil ao garantir:
- Neutralidade da Rede: Provedores de internet não podem discriminar ou bloquear o acesso a conteúdos com base em interesses comerciais.
- Proteção da Privacidade: Introduziu a privacidade como um dos princípios norteadores para o ambiente online, limitando alguns usos de dados pessoais por empresas sem consentimento do usuário.
- Liberdade de Expressão: Criou um modelo que protege a liberdade de expressão online ao impedir que, salvo exceções específicas, plataformas sejam forçadas a remover conteúdos sem decisão judicial, evitando censura privada.
Entenda o Artigo 19 do Marco Civil da Internet
O art. 19 do é um dos pilares da liberdade de expressão na internet no Brasil. A redação aprovada e atualmente vigente conta com o seguinte texto:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
Ao estabelecer que os provedores de internet somente poderiam ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdos publicados por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem providências para remover o conteúdo infrator, essa regra permitiu aos provedores de aplicação a possibilidade de desenvolverem suas atividades sem o risco de responsabilização pelo exercício da liberdade de expressão por seus usuários, evitando, assim, censura prévia.
O caso que deu origem ao julgamento no Supremo Tribunal Federal
A autora afirma que, mesmo sem ser usuária da rede social, teve sua imagem utilizada em um perfil falso.
Alguém teria criado uma conta na plataforma usando seu nome e foto sem sua autorização e, por meio desse perfil, estaria enviando mensagens ofensivas a terceiros.
Incomodada e temendo pelos danos à sua reputação, a autora afirmou ter solicitado a remoção do perfil falso por meio de ferramenta de denúncia disponibilizada pela plataforma, mas que a empresa teria permanecido inerte.
Diante da alegada omissão da plataforma, a autora ingressou com uma ação no Juizado Especial Cível (JEC), requerendo três medidas:
- Remoção imediata do perfil falso
- Pagamento de indenização por danos morais
- Apresentação de dados para futura identificação do criador da conta referente ao perfil falso
A decisão de primeiro grau julgou procedentes os pedidos de (i) remoção do perfil e (ii) apresentação dos dados para identificação do ofensor, mas julgou improcedente (iii) a condenação da plataforma por danos morais.
Ambas as partes recorreram ao tribunal recursal: a autora, buscando obter a indenização, e a rede social, alegando que, de acordo com o art. 15 do Marco Civil da Internet, a obrigação da empresa de armazenar identificadores (como endereço de IPs) se restringia a um período de seis meses, não sendo possível fornecer os dados solicitados.
A Turma Recursal deu provimento parcial a ambos os recursos: concedeu a indenização por danos morais à autora, mas desobrigou a plataforma de fornecer os dados do usuário, aplicando a limitação do MCI.
A fundamentação do Relator para a condenação da plataforma ao pagamento da indenização baseou-se especialmente no Código de Defesa do Consumidor. Nos termos do voto do julgador “condicionar a retirada do perfil falso somente ‘após ordem judicial específica’, na dicção desse artigo, significaria isentar os provedores de aplicações, caso da ré, de toda e qualquer responsabilidade indenizatória, fazendo letra morta do sistema protetivo haurido à luz do Código de Defesa do Consumidor, circunstância que, inclusive, aviltaria preceito constitucional (art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal)”.
Ainda nas palavras do Relator, a indenização seria devida pela plataforma em razão da:
defeituosa prestação de serviços pela ré,
sendo estabelecido o valor de R$10.000,00.
Diante dessa decisão, a plataforma interpôs Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que a condenação por danos morais violaria o art. 19 do Marco Civil da Internet, que isenta os provedores de responsabilidade pelo conteúdo postado por terceiros, exceto quando descumprida uma ordem judicial específica.
O STF, então, aceitou o recurso e reconheceu a repercussão geral da questão, entendendo que a decisão sobre o caso não se restringiria apenas ao da autora e plataforma em questão, mas teria impacto para todas as plataformas digitais e usuários da internet no Brasil.
P.S.: há dois casos sendo discutidos, um anterior (Tema: 533) e outro posterior à vigência do Marco Civil da Internet (Tema 987). Para fins desse material, analisaremos apenas o Tema 987.
O reconhecimento da repercussão geral: a importância do caso para o STF e o futuro da internet no Brasil
O julgamento da constitucionalidade do art. 19 do MCI no STF não se restringe apenas às partes envolvidas no caso concreto.
O reconhecimento da repercussão geral significa que a decisão tomada pelo STF servirá de referência obrigatória para todos os tribunais brasileiros em casos semelhantes, estabelecendo um precedente vinculante sobre a responsabilidade civil dos provedores de aplicação, como plataformas digitais, por conteúdos gerados por terceiros.
A repercussão geral é um instituto processual que tem como objetivo permitir que o STF julgue apenas casos que tenham relevância social, política, econômica ou jurídica, evitando a sobrecarga do tribunal com processos que não tenham impacto além das partes envolvidas.
Na prática, quando um Recurso Extraordinário (RE) chega ao STF, os ministros precisam avaliar se aquele caso específico transcende o interesse individual e afeta a coletividade.
Para que a repercussão geral seja reconhecida, a maioria dos ministros do STF precisam votar a favor de sua admissão.
Se a repercussão geral for reconhecida, o caso passa a ser tratado como um leading case, ou seja, um processo que servirá como modelo para a solução de todas as demais ações que discutam o mesmo tema em instâncias inferiores. A decisão tomada pelo STF será vinculante, ou seja, deverá ser seguida por todos os tribunais do país.
O STF reconheceu a repercussão geral no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1037396 (Tema 987). O tribunal entendeu que os casos não se limitavam a disputas entre as partes envolvidas, mas tratavam de um tema estrutural para a regulação da internet no Brasil.
A questão central discutida nesses recursos é se o art. 19 do MCI, que condiciona a responsabilidade das plataformas à existência de uma ordem judicial específica, é compatível com a Constituição Federal ou não.
Com o reconhecimento da repercussão geral, o STF sinalizou que a decisão impactará toda a jurisprudência nacional sobre liberdade de expressão, moderação de conteúdo e responsabilidade das plataformas digitais, afetando, por exemplo:
- Plataformas digitais, que poderão passar a ter maior responsabilidade sobre o conteúdo de seus usuários e precisarão alterar suas regras de remoção de conteúdos
- Usuários da internet, que, por um lado poderão ganhar mais proteção mas, por outro, poderão ter restrições maiores sobre suas postagens
- Empresas de tecnologia, que precisarão se adequar a novos padrões de governança de conteúdo e transparência na remoção de postagens
- Poder Judiciário, que passará a seguir um entendimento unificado sobre o tema.
Possíveis impactos da decisão do STF
Com a repercussão geral reconhecida, o que o STF decidir sobre a constitucionalidade do art. 19 do MCI servirá como um marco regulatório para o futuro da internet no Brasil. Havia três caminhos possíveis para a decisão:
- Manutenção do art. 19 como está: O STF poderia considerar o dispositivo constitucional, e as plataformas digitais continuarão sendo responsáveis apenas se descumprirem uma ordem judicial específica.
- Inconstitucionalidade total do art. 19: As plataformas passariam a ser responsabilizadas diretamente por não removerem conteúdos ofensivos, independentemente de decisão judicial prévia.
- Inconstitucionalidade parcial ou modificação do texto: O STF poderia estabelecer novas sistemáticas em que, a depender das situações, ora haja possibilidade de responsabilização do provedor, ora não, criando uma nova regra intermediária. E esse foi o caminho decidido pela Corte.
Em 26/06/2025, o STF considerou o art. 19 do MCI como parciamente inconstitucional. Com isso, o Brasil passou a adotar um modelo mais próximo de jurisdições como da União Europeia para alguns assuntos, em que há a possibilidade de responsabilização gradativa das plataformas dependendo da gravidade do conteúdo publicado.
Consequentemente, via de regra, o Brasil se afasta do modelo dos Estados Unidos (Seção 230 do Communications Decency Act¹), que protege os provedores contra responsabilização direta por conteúdos de terceiros. Essa sistemática será mantida em algumas situações.
Linha do tempo do MCI
Fim do julgamento: como ficou?
A decisão reconheceu a inconstitucionalidade parcial e progressiva da norma. Por maioria (8 votos a 3), a Corte construiu uma nova moldura interpretativa para a possibilidade de os provedores de aplicações de internet serem responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Com isso, determinou-se que, até que sobrevenha nova legislação, o artigo 19 deve ser interpretado conforme a Constituição, permitindo a responsabilização em situações excepcionais, ainda que sem ordem judicial.
A nova interpretação estabelece um regime escalonado e mais protetivo, com destaque para:
- crimes e atos ilícitos terão a aplicação da regra do art. 21 do MCI (remoção mediante notificação extrajudicial)
- contas inautênticas ou automatizadas (bots)
- crimes contra a honra, com possibilidade de remoção por notificação extrajudicial
- remoção de replicações sucessivas de conteúdo ofensivo, após decisão judicial original, sem necessidade de nova decisão.
Além disso, consagrou-se a presunção de responsabilidade dos provedores nos casos de anúncios pagos ou conteúdos impulsionados artificialmente (por redes de bots), mesmo sem notificação prévia, salvo se comprovada atuação diligente e tempestiva.
O voto destaca um rol taxativo de conteúdos ilícitos graves, cuja circulação massiva impõe aos provedores o dever de remoção imediata, sob pena de responsabilização. Entre os conteúdos elencados:
- Atos antidemocráticos e crimes contra o Estado Democrático de Direito;
- Terrorismo e sua preparação;
- Indução ou auxílio ao suicídio e automutilação;
- Discriminação racial, étnica, religiosa, de cor, de identidade de gênero, sexualidade, homofobia ou transfobia;
- Crimes contra a mulher e conteúdos de ódio contra mulher;
- Pornografia infantil, crimes sexuais contra vulneráveis e crimes graves contra criança e adolescente
- Tráfico de pessoas.
Nessas hipóteses, configurada falha sistêmica (entendida como omissão no uso de medidas preventivas adequadas conforme o estado da técnica), a responsabilidade será atribuída ao provedor.
Mesmo diante da remoção de conteúdo, o usuário poderá requerer judicialmente o restabelecimento da publicação, desde que demonstre ausência de ilicitude. Caso a decisão judicial determine a restauração, não haverá indenização contra o provedor, aplicando-se ainda assim o art. 19.
A Corte também fixou que não haverá responsabilidade objetiva – a responsabilidade civil permanece fundada na comprovação de dolo (intenção) ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia).
Algumas situações continuarão sob a proteção plena do art. 19 original: serviços de e-mail, ferramentas de videoconferência fechada e serviços de mensageria privada, por prevalecer o sigilo das comunicações (art. 5º, XII, da CF/88). Marketplaces terão a responsabilidade civil nos moldes do Código de Defesa do Consumidor.
Além da responsabilização em si, a decisão impõe novas obrigações aos provedores, que deverão editar autorregulação que abranja:
- Implementação de sistemas de notificações e due process
- Relatórios de transparência sobre conteúdos removidos, impulsionamentos e moderação
- Canais acessíveis de atendimento ao público
Tais regras deverão ser publicadas e revisadas periodicamente de forma transparente e acessível ao público.
Os provedores em operação no Brasil deverão, ainda, estabelecer sede e representação legal no país. O representantes deverão ter poderes para:
- responder perante as esferas administrativa e judicial
- cumprir as determinações judiciais e de responder e cumprir eventuais penalizações, multas e afetações financeiras em que o representado incorrer, especialmente por descumprimento de obrigações legais e judiciais
- Prestar esclarecimentos sobre:
- funcionamento do provedor
- regras e aos procedimentos utilizados para moderação de conteúdo e para a gestão das reclamações
- relatórios de transparência, monitoramento e gestão dos riscos sistêmicos
- regras para o perfilamento de usuários, quando for o caso
- veiculação de publicidade e o impulsionamento remunerado de conteúdos
Por fim, a decisão teve seus efeitos modulados: ela terá eficácia apenas prospectiva (situações futuras, sem retroagir para atingir situações já consolidadas), preservando a segurança jurídica e mantendo válidas decisões transitadas em julgado, encerrando-se com um apelo ao Congresso Nacional para que edite legislação capaz de corrigir as deficiências do atual regime, promovendo uma proteção mais eficaz aos direitos fundamentais diante da complexidade das novas tecnologias.
Como previsto, o julgamento do STF acabou por remodelar a responsabilidade intermediária de provedores de aplicação hoje vigente no Brasil.
Dados do processo
Número: RE 1037396. Veja aqui o processo no site do STF.
Número Único: 0006017-80.2014.8.26.0125
Tipo de Recurso: RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator: Min. Dias Toffoli
Leading Case: Tema: 987
Título: discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.
Descrição: recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 5º, incs. II, IV, IX, XIV e XXXVI, e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição da República, a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que impõe condição para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos de terceiros.
Votação dos Ministros
*Parciais de votos conforme disponibilizadas no site do STF. O conteúdo será atualizado conforme haja a publicação da íntegra