IA que fiscaliza: quando a análise de produtividade vira invasão de privacidade?
Como a evolução tecnológica e a chegada da IA estão impactando os trabalhos à distância
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O caso recentemente repercutido nas mídias sociais em que um dos maiores bancos do Brasil utilizou-se de ferramentas tecnológicas para identificar, mapear, avaliar e dispensar, em massa, empregados que trabalhavam em home office reascendeu a discussão acerca dos limites do poder de fiscalização dos empregadores, cada vez mais viável com ferramentas de Inteligência Artificial (IA) versus o direito à privacidade dos trabalhadores, já que o trabalho realizado em home office muitas vezes mistura as atividades pessoais com as atividades profissionais.
A legislação brasileira acerca do trabalho à distância é da década de 1940. O artigo 62, I da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dispõe que não precisam anotar a jornada de trabalho aqueles empregados que “exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho”.
Doutrina e jurisprudência já são pacíficas no sentido de que se for possível controlar os horários de trabalho, não poderá ser excetuada a marcação do ponto do trabalhador, devendo ser afastada a aplicação do inciso I do artigo 62 da CLT.
Na época em que a lei foi consolidada, era realmente imponível controlar os trabalhos à distância, pois não havia GPS, celulares, sistemas de login e aplicativos.
Nem mesmo a reforma trabalhista de 2017, quando trouxe o inciso III ao artigo 62 da CLT, que trata do teletrabalho (incluindo aqui o home office), imaginava a popularização de uma tecnologia como a IA.
Nesse sentido, pode-se dizer que com o trabalho remoto e a IA, os fundamentos do artigo 62, I da CLT vêm sendo esvaziados pela nova realidade. É quase impossível imaginar algum trabalho realizado à distância que não possa ser monitorado por meios tecnológicos, como geolocalização (GPS) em celulares corporativos, softwares de login/logout remoto, sistemas de IA que rastreiam tempo de conexão, uso de aplicativos de produtividade, entre outros.
Ou seja, essas tecnologias tornam plenamente viável o controle da jornada e da produtividade, ainda que o empregado não esteja fisicamente na empresa, o que impõe concluir que a nova realidade acabou por revogar o arigo 62, I da CLT - não por lei, mas pela incompatibilidade com a realidade tecnológica.
Diversas ferramentas de IA são atualmente utilizadas pelas empresas para controlar as atividades, os horários, a produtividade, assiduidade, cumprimento de regras de compliance e atingimento de metas dos empregados.
Essas ferramentas ajudam a dar visibilidade e gerar insights sobre produtividade e paradigmas de teletrabalho, podendo detectar padrões de comportamento que fogem da média ou identificar onde há gargalos.
Tanta tecnologia disponível para as empresas nos faz perguntar: como fica a questão da privacidade dos trabalhadores? Seria o fim da autonomia nas relações de trabalho? Até que ponto a busca por transparência e ética nas relações laborais pode invadir a privacidade dos trabalhadores, expondo dados dos sujeitos da relação de trabalho que possuem direitos constitucionais como dignidade da pessoa humana, direito à privacidade e intimidade?
A Justiça do Trabalho sempre foi muito protetora e rigorosa com as empresas quando se trata de direito à privacidade e à intimidade.
O princípio protetor do direito do trabalho sempre foi aplicado na Justiça do Trabalho, principalmente quando houvesse dúvida. Costuma-se dizer que é o princípio “in dubio pro operário”, ou seja, havendo dúvida sobre a interpretação de uma norma, a interpretação deve ser favorável ao trabalhador.
Ocorre que a transformação tecnológica pela qual a relação de trabalho vem passando já está sendo sentida pelo judiciário. Nesse cenário, a IA está sendo encarada como importante ferramenta que acaba por reduzir a incerteza e trazer provas daquilo que antes era dúvida.
Temas como equiparação salarial, em que a empresa antigamente tinha dificuldade de provar que o “empregado A” produzia menos do que o “empregado B”, agora podem facilmente ser provados pelas empresas que possuem ferramentas de controle de produtividade.
A Justiça do Trabalho tem abordado o tema do monitoramento no trabalho remoto em diversos julgados. Entre os exemplos mais recorrentes, destacam-se o uso de aplicativos próprios de monitoramento com controle de jornada por plataformas de comunicação e registros de login/logoff nos equipamentos da empresa, entre outros.
Em todos esses casos, o foco do monitoramento recai sobre a produtividade e a execução das tarefas pelos empregados, normalmente com o objetivo de verificar a compatibilidade entre a jornada registrada e o efetivo desempenho das atividades.
Contudo, o Projeto de Lei nº 2338/2023 (PL) - que dispõe sobre o desenvolvimento, fomento e uso ético e responsável da IA no Brasil, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados - enquadra como sistemas de alto risco aqueles que utilizam Inteligência Artificial para fins relacionados à gestão de relações de trabalho e avaliação de desempenho e de comportamento de empregados. Essa classificação decorre do potencial desses sistemas de impactarem direitos fundamentais dos trabalhados.
O texto não proíbe o uso da IA nesses contextos, mas impõe obrigações de governança reforçadas, como a necessidade de transparência, supervisão humana significativa, explicabilidade das decisões automatizadas e mitigação de vieses e discriminações.
Na prática, isso significa que empresas que adotam ferramentas de IA para gestão de pessoas deverão assegurar que tais sistemas sejam auditáveis, documentados e utilizados de forma proporcional e ética, com respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e à legislação trabalhista vigente.
Em suma, a incorporação da Inteligência Artificial na gestão do trabalho remoto trouxe ganhos evidentes de eficiência e controle, mas também revelou um limite sensível entre monitorar a produtividade e invadir a privacidade. O cuidado é necessário para evitar que a promessa de otimização não ceda espaço à vigilância constante - com riscos à autonomia, ao bem-estar e à confiança nas relações de trabalho.